Guarda Compartilhada

20 de março de 2022by FABIANA.ALVES0

“O direito não deve ignorar a realidade.

Quando o direito ignora a realidade,

esta se vinga e ignora aquele.”

George Ripert

 

A família tem passado por profundas transformações estruturais ao longo do tempo. O tradicional conceito de família nuclear, composta por pai, mãe e filhos, não mais se coaduna com a realidade atual caracterizada por novos arranjos familiares. Na pós-modernidade, a família não mais é compreendida como algo natural, ou seja, de origem exclusivamente biológica, mas sim como uma instituição cultural, que, portanto, sofre variações no tempo e no espaço, e na qual os laços afetivos têm se destacado e se tornado cada vez mais intensos.

Neste contexto, o afeto tem sido juridicamente reconhecido, ganhando status de princípio constitucional implícito, decorrente da valorização da dignidade humana.  Considerado um dos fundamentos da família contemporânea, é nele que as relações familiares passaram a se apoiar e se constituir, sendo que, para o Direito, o reconhecimento da existência de vínculo afetivo entre duas pessoas decorre da constatação de uma relação de carinho, cuidado e atenção mútuos entre elas.

Um aspecto importante a se destacar, neste novo cenário social, foi o surgimento de novas estruturas parentais, nas quais pais e mães passaram a desempenhar novos papéis no sistema familiar. Como consequência destas transformações, não apenas muitos pais passaram a reivindicar seu direito de exercer a parentalidade de modo pleno e efetivo, mesmo após a dissolução do casamento ou união estável, como também muitos pais e mães passaram a lutar para garantir o exercício das funções decorrentes da parentalidade socioafetiva, cada vez mais comum, dada a pluralidade de formas de constituição das famílias.

Nesta nova realidade social, surgem famílias reconstituídas nas quais os filhos havidos em uniões anteriores, muitas vezes, estabelecem fortes vínculos afetivos com os novos companheiros ou cônjuges de seus genitores, o que pode resultar em uma múltipla vinculação parental das crianças ou adolescentes que fazem parte destes novos arranjos familiares, extrapolando os laços biológicos.

A duplicidade de vínculos materno ou paterno-filiais baseados no afeto, não raro, impõe o reconhecimento da multiparentalidade, na qual, sem excluir a parentalidade biológica, o Direito reconhece a parentalidade socioafetiva, a fim de preservar os direitos fundamentais de todos os envolvidos, especialmente a dignidade da pessoa humana e a afetividade.

Em 2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal tomou uma importante decisão sobre este complexo tema, reconhecendo a possibilidade de coexistência dos vínculos parentais biológico e socioafetivo.  A tese aprovada por ampla maioria dos Ministros no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 898.060, que teve repercussão geral reconhecida (repercussão geral 622), apresenta a seguinte redação: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com efeitos jurídicos próprios.” Em apertada síntese, o STF acolheu expressamente a possibilidade jurídica da multiparentalidade.

Essa possibilidade de múltipla filiação tem provocado um caloroso debate acerca de seus efeitos jurídicos, dentre os quais devem ser destacados os aspectos patrimoniais, sucessórios e também a regulamentação da guarda e convívio da criança ou adolescente com seus múltiplos pais.

No tocante à guarda, cabe destacar que a Lei nº 13.058/2014 consolidou a igualdade parental entre pai e mãe ao estabelecer a guarda compartilhada como uma presunção legal, com o intuito de assegurar o pleno exercício do poder familiar e, consequentemente, a possibilidade de efetiva participação de ambos na vida cotidiana dos filhos, após a separação, divórcio ou dissolução da união estável, ou mesmo nos casos em que os pais nunca tenham formado um casal conjugal. Destarte, a guarda compartilhada caracteriza-se pela constituição de famílias multinucleares, uma vez que os filhos passam a pertencer a dois (ou mais) núcleos familiares distintos, preservando os vínculos afetivos tanto com o pai quanto com a mãe.

Em outras palavras, a Lei 13.058/2014 teve como uma de suas principais contribuições separar a noções de conjugalidade e de parentalidade, garantir o pleno exercício das funções parentais e, assim, manter, por meio do cuidado e participação efetiva dos pais no cotidiano dos filhos, o vínculo afetivo existente entre eles.

Ainda há muito a refletir sobre este complexo tema, mas parece evidente que a corresponsabilidade dos pais e o equilíbrio na divisão do tempo de convivência destes com os filhos também devem ser aplicados aos casos de parentalidade socioafetiva e de multiparentalidade, uma vez que o principal objetivo da guarda compartilhada é garantir o bem-estar físico, psíquico e emocional das crianças e adolescentes, por meio da manutenção de seus referenciais parentais no exercício do papel de cuidadores a fim de assegurar a manutenção dos vínculos afetivos.

Assim como em qualquer outro arranjo familiar, para que haja o efetivo compartilhamento da guarda nas hipóteses de multiparentalidade, deve ser garantida a participação de todos os pais na rotina diária dos filhos,  o que pressupõe a alternância do tempo de convivência destes com todas as figuras de referência paterna e materna. Isso porque, se a estrutura de poder decorrente da guarda unilateral é prejudicial quando há um duplo referencial que deveria efetivamente exercer as funções parentais,  nos casos de multiparentalidade, a concentração da guarda na figura de apenas um dos pais passa a ser ainda mais temerária por alijar o filho dos outros dois ou mais núcleos familiares ao qual pertence.

Reconhece-se que, nestes casos, a distribuição equitativa do tempo de convívio das crianças e adolescentes com a pluralidade de pais representará um desafio para o magistrado e até mesmo para as partes envolvidas, as quais deverão buscar uma solução criativa e conveniente para todos, em especial para os filhos.

Seja qual for o arranjo parental, a resistência dos Tribunais brasileiros em aplicar a guarda compartilhada deve ser combatida. Neste sentido, em seu último ato como Corregedora Nacional de Justiça, a Ministra Nancy Andrighi publicou a Recomendação nº 25/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), segundo a qual, os juízes das Varas de Família, ao decidirem sobre a guarda dos filhos, deverão considerar a guarda compartilhada como regra, sendo que, ao decretarem a guarda unilateral,  deverão justificar a impossibilidade de aplicação da presunção legal, no caso concreto, levando em consideração os critérios estabelecidos no § 2º do art. 1.584 da Código Civil.

Assim, resta evidente que a guarda compartilhada foi escolhida pelo legislador e corroborada pelo CNJ como a modalidade mais conveniente para os filhos, protegendo, inclusive, os filhos de arranjos familiares minoritários, de modo que deverá ser aplicada também aos casos de multiparentalidade e nas hipóteses de homoparentalidade, uma vez que ninguém pode ser privado de direito ou sofrer restrições de ordem jurídica por conta de sua orientação sexual.

Resta evidente que o ordenamento jurídico brasileiro assegura às crianças e aos adolescentes o direito de convivência familiar, que deve ser garantido com relação a todos aqueles que assumem efetivamente a condição de pai e de mãe. Por conseguinte, com base em princípios essenciais, como o da dignidade da pessoa humana, da igualdade, do pluralismo, da não discriminação e da busca da felicidade, deve ser garantido o exercício da guarda compartilhada, com todos os seus efeitos jurídicos, aos pais e filhos independentemente da natureza do vínculo materno ou paterno-filial e em qualquer arranjo familiar.

Por fim, espera-se que o Poder Judiciário aja com sensibilidade e responsabilidade para a construção de uma nova sociedade, na qual o melhor interesse da criança seja efetivamente assegurado e a família, em qualquer de seus possíveis formatos contemporâneos, possibilite o desenvolvimento adequado dos infantes e adolescentes e, assim, possa representar um verdadeiro locus de plena realização da personalidade de seus  membros, evitando-se que, por conta do preconceito ou  apego a velhos paradigmas desprovidos de base científica, sejam suprimidos direitos fundamentais dos indivíduos que a compõem.

FABIANA.ALVES

Bacharela em Direito pela USP e advogada em São Paulo. Especialista em Direito de Família e das Sucessões pela Escola Paulista de Direito, em Direito Empresarial pela PUC/SP e em Métodos Alternativos de Solução de Conflitos pela Escola Paulista da Magistratura. Mediadora privada capacitada pela Algi/Mediaras, pela Escola Superior da Advocacia da OAB/SP e capacitada em Mediação Transformativa-reflexiva pelo Instituto Mediativa. Advogada Colaborativa capacitada pelo Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas. Fundadora do Movimento Mulheres com Direito. Conselheira Seccional Efetiva da OAB/SP (2019- ago/2021). Bacharela em Linguística pela FFLCH-USP, licenciada em Português (Língua e Literatura) pela FFLCH-USP.

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